“Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito.
É preciso também que haja silêncio dentro da alma.” (Alberto Caeiro)




15.11.10

SOBRE AS CICATRIZES

Fui uma criança muito agitada.
Por não ter tido paciência para engatinhar,
logo me levantei e aprendi a correr.
As marcas dessa ansiedade foram sentidas pelo corpo – galos permanentes na testa – dos lados direito e esquerdo – e muitos, muitos band-aids.
Joelhos e cotovelos que se revezavam, feito semáforo, vermelho-mercúrio.

Tudo isso conta minha mãe.
Eu, na verdade, tenho uma memória lacunar da infância – desconfio de que a pressa não dava tempo suficiente às imagens para que decantassem.
Hoje me restam as cicatrizes – riscos esbranquiçados e levemente salientes na pele – pistas da minha história.

...

Há um ano, fui vítima de um assalto.
Voltava para casa trazendo os livros novos que comprara em uma feira quando um motoqueiro tentou levar minha bolsa.
A alça – pesada de tanto conhecimento – enroscou-se em meu braço, o tranco da puxada me derrubou e fui arrastada por alguns metros pela moto.
Pernas, pés e costas esfoliados.
Cotovelo direito sangrando muito.

É interessante que uma ferida nos faça negligenciar as demais partes do corpo. Por algumas semanas, tive os movimentos limitados e tornei-me um cotovelo.

Ainda mais interessante é notar que uma ferida sempre atrai novas pancadas. O ferimento volta a ficar exposto, sofremos novos sangramentos e mais dor.

A marca deixada ainda não está totalmente cicatrizada.
Somente os machucados de infância desaparecem rapidamente.

...

Há pouco mais de dois anos sofri um ferimento de alma.
Dessas feridas sérias de adulto que não cicatrizam em algumas semanas. Tornei-me então, um coração machucado.
Como dita a regra, negligenciando as demais partes do todo.

Feridas sempre atraem novas pancadas – fotos, telefonemas e novas mentiras – destaparam por vezes o ferimento que voltava a sangrar e doer.

Mulheres grávidas, crianças que caminham de mãos dadas com seus pais, lojas de artigo infantil - olhos embaçados - uma mistura de lágrimas, sangue e paradas respiratórias.

Examinando esta semana meu estado de alma – após uma nova escoriação – pude perceber que a ferida ainda dói, mas cada vez mais se parece com uma cicatriz.

...

Cicatrizes não sangram e não doem.
São um memorial tatuado em nossas peles que ajudam a contar histórias.
Quem fomos e como chegamos a quem somos.
Símbolos - como cruzes que deixamos na estrada.