“Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito.
É preciso também que haja silêncio dentro da alma.” (Alberto Caeiro)




31.10.07

RESÍDUO

De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
— vazio — de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Carlos Drummond de Andrade

16.10.07

MORTE
(em um velório. minha primeira vez)

viver é aproximar-se cada dia da morte.

instante pleno. completo.
nada por ser e tudo o foi.
o feito e o não feito estão.

existiremos ainda.
enquanto tivermos descendentes que se lembrem e contem.
existir na lembrança do outro. na fabulação.
não existir sozinho.

o corpo jaz.

olho pela primeira vez um corpo sem vida.
parece ela poderia se levantar a qualquer momento.
tudo como antes – pernas, músculos, tendões, cérebro.
quase posso ver o véu mover-se ao ritmo de sua respiração.

uma célula, cinzas.

filhos ao lado do caixão.
dor, alívio, culpa. um susto.
cada qual a seu modo.

flores feias, mal-cheirosas.
há gérberas vermelhas – minhas preferidas
aqui feias.
até girassóis.
feios.

inversão do ciclo.
essa mãe ainda filha.

a senhora idosa, desamparada, entra:
_ filha...

chama.
(eu jamais ouvira mais triste)
não há resposta ao chamado. e jamais haverá.

13.10.07

NASCIMENTO
(na maternidade. minha primeira vez)

um ser em seus primeiros dez minutos de vida.
roxo. enrrugado. olhos cerrados. frio.

respirar pela primeira vez. enxergar pela primeira vez.
acostumar-se as funções fisiológicas
primeira mamada, primeiro cocô.
processos dolorosos e traumáticos do quais nos esquecemos (?).

aprender dor e a lidar com ela – até sem chorar.
cólica causada pelo leite – ou qualquer outro alimento
– ainda vai ser "só" uma cólica.
dores piores – as que não do corpo.

descobrir meu corpo.
pescoço sustenta cabeça – mexê-lo segundo minha vontade.
torcicolo.

mão – pé.
extremidades deliciosamente – mordidas babadas.
não alcançá-las mais.

cabeça pensante.
como pensar sem as palavras?
pensamento em estado puro.
sentir dor, fome, sono – sem saber que há outros e que podem sentir como eu (?)
cada um dos sentires tem seu nome (?)
– eu tenho um nome.
mamãe tem nome. papai também.

babódromo.
tantas pessoas vêm me visitar. ver-me pela primeira vez.
quantas ainda estarão em meus aniversários futuros?
através do vidro, tecem comentários absurdos
com a cara de quem eu nasci? com a minha, ora essa!
que por hora ainda confunde-se a outras partes do corpo.

saber-se único.
ninguém mais é igual a mim e, ao mesmo tempo

cresço rápido.
esqueço chorar.
esqueço dormir.
esqueço comer.

esqueço as vozes dos meus pais
o som mais confortável que eu tive.
esqueço precisava deles para tudo.
esqueço noites acordadas.

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se e quando mãe me lembrarei.
primeiros passos, palavras, sonhos, desilusões.

vê-lo crescer e ir embora.
vê-lo se distanciar e vê-lo se/me esquecer.

9.10.07

"O que nós vemos das cousas são as cousas
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludir-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver.
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo"

(...)


Alberto Caeiro

2.10.07

Aula de Química

[os estados físicos da matéria: SÓLIDO, LÍQUIDO e GASOSO]

- Sólidos os corpos, líquidos seus fluidos, gasosa respiração.

(suspiro)

- E os sentimentos?

[VAPORIZAÇÃO, SOLIDIFICAÇÃO, SUBLIMAÇÃO]

Nasci em descompasso.
Ossos sólidos para músculos líquidos.

"É flacidez muscular", explicou um dia a fisioterapeuta.

A mente coordena.
O corpo desobedece.
Falta coordenação motora.

O professor insiste:
[Quanto maior a pressão, mais rápida a velocidade da reação, devido ao aumento no número de colisões]

- Tropeço, trombada, batida, choque!

As pessoas colidem umas com as outras na tentativa de suprir a falta de contato físico. Saudade tátil.

[O catalisador aumenta a velocidade da reação sem ser consumido]

- Como passar por tantas reações, ileso?

Não consigo me adaptar à gravidade.

- Água quente, banho, edredon, travesseiro (...) massagem, cafuné, colo.

Os ossos se acomodam melhor em superfícies macias.
Acostumados à flacidez dos músculos.
Ou a forma coloidal da alma?

[A força normal é a reação à força peso]

- Já estamos na aula de física? Quando bateu o sinal?

- Ah... pensei que fosse o coração.
Me passa o gabarito da 23? Não, da aula de química.

- Obrigada!

1.10.07

Acordaram.

Não sabiam porque eram ou continuavam amigos.
Naquele instante - o que os manteria unidos era o que nunca fora?
E se fora? Ainda?

Não tenho muitos amigos.
Estranho pensar que só homens.
Interessante porque mulher?
Queria ser... não sabia.
Mais? Quanto?

Não pensaria nisto hoje.
Chateava-se.

Pensavam um no outro – ao mesmo tempo! Na mesma noite!
Coincidência. Existe?

Tinha dificuldades em conversar com ele.
Só às vezes.

Ele perguntava demais. Ficava aflita.
Quem pergunta demais, espera alguma resposta.
Espera?
E se te dou a resposta errada?

Pensou sobre o encontro. Antes.
Imaginou. Sobre o que conversariam? Sobre nós mesmos.

Porque a foto era “minha”? Não gostava.
Nossa. Nossa!
Não estávamos os dois ali? Estavam. Estavam?

Falavam sobre a goiabada...
Como alguém pode não gostar de goiabada?
Meu doce preferido de infância: “Uma afronta!”

Não sabia mais nada sobre ele. Tinha decidido.
Não conseguiria.
“Quem é você? Quem é você? Quem é você?”
Pensava, perguntava, perguntavam, perguntava-se.

Não tive. Teve coragem.
Dizer que havia sonhado com ele? Não podia.
(Não foi! Respondo-te!)

Mas roubei-te um beijo.
Acordei.